segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Ela

E ela, sempre tão calada, tão distante e discreta, começou a falar. E como se aquela fala inicial tivesse aberto uma represa interna, não parou mais de falar. Desconexa, atemporal, foi desfiando todas as memórias. Foi despejando tudo que estava guardado no balaio do seu peito que arfava, como que querendo se livrar logo de um peso imenso. A primeira risada, que foi para ela como uma luz imensa que a aqueceu inteira, a primeira febre, o casaquinho que costurou a mão, mesmo sem saber costurar e que colocava orgulhosamente nele, a perna quebrada na queda da árvore, o caipirinha que se recusou a dançar a quadrilha na primeira festa da escola, o cartão onde ele escreveu que a amava mais que mil minas de explosão, a angústia nas noites no hospital, as mãos suadas ao ver a primeira paixão (mãos que procuravam as dela pedindo socorro), as brigas por causa das lições não feitas, do banho não tomado, da bagunça do quarto. Lembrou das tardes de domingo, após o almoço, quando se aconchegavam em frente à Tv, rindo de um filme qualquer. Ela ria por baixo das lágrimas que desciam sem freio pelo seu rosto, contornavam as olheiras das noites mal dormidas, faziam brilhar a pele pálida.
Falou também da dor, do peso que a encurvava, da culpa, da raiva, do medo, da preocupação constante; e voltava à dor. Uma dor imensa, que não cedia, não amenizava, não ia embora. Disse das noites em que acordava e descobria que aquilo não era um pesadelo, que mesmo acordada aquele sonho ruim não passava, de como sentia pena dela ao descobrir que teria que viver naquele inferno diário e de como sentia medo daquele inferno ser eterno. Falou da compaixão, das noites em que não se cobria, apesar do frio, por não se sentir no direito de se confortar sabendo que ele não tinha nenhum conforto onde estava; de como ficou dias sem conseguir comer nada, numa espécie de crença mítica de que não comendo ele teria o que comer. Falou da saudade, uma enorme saudade do riso dele, dos momentos de carinho e cumplicidade entre mãe e filho.
Falava sem olhar para ninguém. Fitava um ponto fixo diante dela. Falava talvez para si. E, aos poucos, foi se calando, enxugou as lágrimas que ainda escorriam e perguntou pelas horas me olhando diretamente nos olhos. Não respondi. Nem eu, nem nenhuma das mulheres que a escutavam fascinadas e comovidas. E permanecemos todas caladas até que chegou a nossa vez na fila e fomos entrando aos poucos, aliviadas pelo jorro de dor daquela mulher que voltou a sua discrição natural. Ninguém lembrou de perguntar seu nome.

Um comentário:

Dante Pincelli O velho disse...

A única coisa em que eu consigo pensar, após ler este conto é (desculpe a expressão):
CARALHO!!!